Fatos e Delírios - Guillermo Piernes
Hechos y delirios
05/10/2022 00:00
Capitulo 10 - A batalha diplomática de Itaipu (1978)
Eram diários os embates diplomáticos entre Brasil e Argentina, os dois países com regimes militares que buscavam se sobressair na liderança geopolítica.
Dois anos depois de instaurado o regime militar brasileiro foi assinado um acordo com o general Alfredo Stroessner, do Paraguai, para estudar o aproveitamento dos recursos hidráulicos entre os dos países. Foi a partir desse acordo que se deu inicio a represa binacional de Itaipu. E da mais dura batalha diplomática, na história republicana entre Brasil e Argentina.
Era muita história em jogo, cujos primórdios se remontam a Guerra do Paraguai ocorrida entre os anos 1864 e 1870, envolvendo o Brasil, Argentina e Uruguai, que formaram Tríplice Aliança para combater o Paraguai.
Independente das divergências entre os historiadores sobre a respeito das causas do conflito, essa guerra marcou uma das maiores tragédias da região, resultando na morte de grande parte da população paraguaia e na devastação de inúmeras propriedades.
Nesse conflito, o personagem mais odiado pelos paraguaios foi o Conde d`Eu, que conduziu as tropas brasileiras até a Assunção, e permitiu saques e outras barbaridades.
O jornal paraguaio Patria publicou durante anos noticias contemporâneas sobre a Guerra do Paraguai como, por exemplo: "num dia como hoje os brasileiros colocaram fogo numa mata onde se escondia uma tropa formada por crianças"..."os brasileiros saquearam as igrejas de Assunção"...E assim por diante.
Bom lembrar que se o maior vilão, na visão dos os paraguaios na guerra foi o Brasil, existem historiadores que defendem que a semente do conflito foi plantada por Inglaterra, em salvaguarda dos seus interesses.
O regime da família Lopez deu os primeiros passos para a industrialização. "Tudo o que o Paraguai consome, ele mesmo produz", era a diretriz. Foram construídas ferrovias e pequenas indústrias, e contratados especialistas de países europeus para expandir a produção industrial.
Quando Paraguai estabeleceu controle rígido da navegação nos rios, Inglaterra interpretou essa medida como um obstáculo ao comercio e a sua diplomacia teve reuniões com os governos do Rio de Janeiro e Buenos Aires sobre o tema. As ambições geopolíticas do Brasil e Argentina estavam em crescimento.
O governo de Lopez evidentemente menosprezou o perigo do conflito até que este começou, ignorando que todo grande incêndio começa com uma faísca. Os países foram para a guerra, que tantas cicatrizes deixou.
A construção bilateral da Usina de Itaipu era, portanto, uma boa oportunidade para Brasil brindar cooperação em larga escala e virar a página do ressentimento paraguaio. O tempo passou, mas quase aconteceu o mesmo com o tema Itaipú.
Em 1978, aceitei a proposta da UPI para ser correspondente em Brasília. Queriam um reforço pela possibilidade de uma guerra entre Brasil e Argentina, se desandassem as tensas negociações pela construção da represa de Itaipu. Possibilidade que houve, sim, mas felizmente, não houve guerra.
Em Brasília, o primeiro ano foi de cobertura diária de embates diplomáticos sobre Itaipu entre Brasil e Argentina, os dois países com regimes militares. Cuidadosos conceitos sobre vazão, eclusas, turbinas. Um escorregão podia detonar a bomba.
A barragem foi construída pelo Brasil e Paraguai entre 1975 e 1982, quando esses dois países e Argentina tinham generais na presidência.
O briefing diário na Secretaria de Informação do Itamaraty (SEI) reunia vários dos melhores jornalistas de Brasília. Sabíamos de cor os principiais dados técnicos da represa chamada de "bomba hídrica" por alguns setores argentinos ultradireitistas que até mencionavam a necessidade de armas nucleares para a defesa dessa ameaça.
Cada palavra dos porta-vozes diplomáticos (primeiro Luiz Felipe Lampreia e depois Bernardo Pericás) tinha reflexo na temperatura das discussões. O Itamaraty trabalhava muito bem e nos proporcionava excelente informação para poder transmitir com conteúdo e precisão.
O pêndulo da situação era o Paraguai, cujo chanceler Alberto Nogués visitava periodicamente Buenos Aires e Brasília, sabia tirar bom proveito dos desentendimentos entre governos militares dos grandes sul-americanos em benefício do seu país.
Dez litros mais de vazão ou meio centímetro de algum ponto da represa significavam aumento da tensão. Um dia cheguei atrasado ao briefing do Itamaraty. O porta-voz Lampreia estava explicando que durante a visita do ministro paraguaio a Brasília tinha se chegado a um consenso entre brasileiros e paraguaios, em torno do aumento de duas turbinas para Itaipu.
Nessa época não dava para brincar, mudar uma vírgula, sem sentir a reação argentina. Fiquei perplexo. Eu sabia que se enviasse imediatamente essa notícia poderia agravar uma situação já crítica. Pedi a Lampreia que me aguardasse porque ia a dar um pulo no Edificio Conic, onde então funcionava a embaixada da Argentina, a um quilômetro do Itamaraty, para fazer uma sondagem antes de enviar a noticia.
Cada matéria sobre o assunto requeria total cuidado. Era acender fósforos perto de um barril de pólvora. Nos os jornalistas credenciados perante o Itamaraty buscávamos informar com base em dados e pronunciamentos com responsabilidade sobre um processo que sabíamos era crítico. Nunca alentar manchetes sensacionalistas.
O embaixador argentino era Oscar Camilión, uma pessoa extremamente inteligente e carismática, posteriormente nomeado Ministro da Defesa. Pedi para falar com ele. "Está em reunião", disse a secretária. "Interrompa porque a coisa é muito séria", respondi.
Camilión apareceu na porta interrompendo seu despacho. Sem preâmbulos relatei a ele a intenção de aumento do número de turbinas. "É uma declaração de guerra", comentou com voz grave.
O embaixador sabia que os militares argentinos no poder estavam com o pavio curto. Em 1978 esse país esteve a um passo da guerra com o Chile do general Augusto Pinochet. Em 1982, esse poder militar levou Argentina a uma guerra com a Inglaterra, pelas Malvinas.
Pedi a Camilión nada informar ao Palácio San Martin até conversar outra vez com o Itamaraty. Passei o comentário de Camilión para Lampreia quem me disse para aguardar pois ia falar primeiro com o chanceler Azeredo da Silveira.
Após a consulta, o porta-voz "detalhou" que o consenso era sobre as melhores práticas a serem analisadas na gigantesca obra, incluindo "estudos técnicos amplos sobre aumento de turbinas"...A bom entendedor...nada de aumento de turbinas até uma conversação maior.
"É aceitável", sentenciou o embaixador argentino perante a versão mais detalhada. Senti alívio quando retransmiti para o porta-voz a reação do Camilión. Finalmente, no belo entardecer de Brasília, cheguei ao escritório do Setor Comercial Sul da UPI. Enviei por teletipo a notícia, que foi bem publicada na Argentina, sem manchetes belicosas.
O projeto em Itaipu começou com 14 turbinas e foi finalizando com 20.
Voltemos à sorte no longo caminho até o fim da altamente perigosa tensão por Itaipu. O general João Figueiredo, o último presidente do regime militar que governou de 1979 a 1985, participou de um almoço no Iate Clube do Rio de Janeiro com os correspondentes internacionais, a dias de tomar posse.
O alemão Horst Grimm, da Deutsche Presse-Agentur (DPA) o presidente da Associação dos Correspondentes da Imprensa Estrangeira (ACIE) no Brasil. Eu era o vice. Conforme o cerimonial, o homenageado ficou entre o presidente e o vice. Nosso colega alemão falava fluente inglês, porém um português precário. Figueiredo falava português e espanhol.
Após uma troca de idéias, Figueiredo passou a conversar quase que exclusivamente comigo durante o almoço.
No almoço Figueiredo me disse "já que você é argentino te antecipo que vou fazer uma grande aliança com a Argentina. Será muito bom. Eu conheço muito os argentinos, tenho o maior carinho por eles porque vivi como exilado com o meu pai".
O general Euclides Figueiredo, participou da chamada Revolução Constitucionalista (em 1932), confronto armado entre forças majoritariamente paulistas contra o governo de Getúlio Vargas, que havia ascendido por meio da Revolução de 1930, Após a derrota de movimento iniciado pelos paulistas, o pai de João teve de ir ao exílio em Buenos Aires.
Figueiredo contou que o seu irmão aprendeu primeiro castelhano, antes que o português. Que frequentava a confeitaria El Molino com o seu pai. Que a solidariedade dos argentinos possibilitou que tivessem uma vida confortável. Que a aliança seria frutífera em muitos campos.
Nesse ponto eu coloquei para ele o tema de Itaipu como um grande obstáculo à iniciativa. "Um milhão de quilowatts mais, ou menos... eu quero a aliança com a Argentina", disse. Era a bomba da paz. Ficavam para atrás as menções tenebrosas a "bomba atómica" e "bomba hídrica" dos fanáticos por guerras. Era a paz. Era um gigantesco furo jornalístico.
Não publiquei. No dia seguinte, pedi a assessores de imprensa de Figueiredo que confirmassem a declaração que tinha me feito num tom intimista, que até podia ser interpretado em informação em off. "O que falei está falado", foi o recado do Figueiredo. Enviei a matéria. Foi um "furo" mundial de primeira.
Não houve guerra e sim uma avalanche histórica de cooperação entre os dois países.
Em maio de 1980, Figueiredo visitou Buenos Aires, naquela que foi a primeira visita de um presidente brasileiro à capital argentina em 45 anos. O último encontro presidencial tinha sido na fronteira entre Getúlio Vargas e Juan Perón. Isso dava a prova cabal de que as relações entre os dois países não eram das melhores.
Do lado brasileiro sempre foi comentado o fato que o regime de Perón tinha acolhido cientistas alemães que trabalharam para o regime nazista. Era verdade e foram uns duzentos. Os Estados Unidos, ao mesmo tempo, recebeu mais de trezentos cientistas alemães que tinham trabalhado para o regime nazista. Entre os cientistas adotados pelos Estados Unidos estava Wernher Von Braum, que desenvolveu os foguetes V-2, com os quais Hitler atacou Londres. Von Braum foi a principal figura para o desenvolvimento da NASA e da exploração espacial americana.
Dois pesos e duas medidas sempre funcionaram a favor das grandes potências.
A visita de Figueiredo a Buenos Aires foi um sucesso completo. Em meio à ditadura militar, os argentinos gritavam "viva la democracia brasileña" quando Figueiredo caminhou pela calle Florida. Ele tinha conquistado a todos quando ao chegar a Ezeiza disse "me siento el pibe porteño que siempre fui". Sabiam que era uma incipiente democracia, porém era alguma coisa diferente do que viviam nesses anos escuros para a maioria dos argentinos. Esse presidente brasileiro, ainda que militar, era amistoso. Uma tímida luz de esperança de um povo censurado, frustrado, enlutado.
Figueiredo se reuniu com os colegas argentinos, generais de cavalaria. Nessa ocasião afirmou que, com o tempo as forças armadas no governo vão sofrendo um desgaste perante a população, a partir de um determinado momento é preciso realizar uma abertura. Foi um impacto nos círculos castrenses argentinos que, nesse ano, acredito, pensavam se perpetuar no poder.
Em paralelo, foram assinados importantes acordos que o Itamaraty tinha preparado para a aliança, de integração energética, comercio e cooperação na área nuclear. O comentário geral era de que "o Itamaraty não improvisa". Não era uma verdade absoluta, porém tinha lá seu fundo de verdade.
Nessa época no Brasil, se acelerava o processo da redemocratização, a anistia, o fim da censura. Lia com atenção cada entrelinha do grande colunista político Carlos Castelo Branco, do Jornal do Brasil, com que conversei em várias ocasiões buscando a sua luz. Entrevistei vários dos principais atores, Ulysses Guimarães, Fernando Henrique Cardoso, José Sarney, Lula, Teotônio Vilela, Mario Covas, o próprio Figueiredo e o coronel reformado, Cesar Cals.
Esse afável grandalhão foi ministro de Minas e Energia do general Figueiredo. Era da total confiança de Figueiredo e passava, ocasionalmente, para alguns formadores de opinião a visão da cúpula militar sobre o "lento, gradual e seguro" processo de redemocratização.
Num jantar na casa dele em Botafogo, no Rio, com Severo e o jornalista mineiro José Alencar, ele disse que seria ideal a "legalização de somente cinco partidos políticos: de esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita e direita".
A pragmática fórmula foi esquecida quando começou a chamada Nova República. Resulta difícil imaginar qual seria a reação daquela cúpula de poder do regime militar se soubesse que foram 30 partidos que participaram das eleições de 2022, com um fundo eleitoral bilionário. Muitos desejos ficam apenas nisso, nem que sejam de poderosos generais.
Com a democracia restaurada no Brasil e Argentina assisti, frente ao lago formado pelas águas represadas de Itaipu, o encontro entre Sarney e Raúl Alfonsín. E pensar quantos dias e horas de tensão foram necessários para se chegar nesse ponto ... mas o gigantesco consolo foi que não houve nem guerra, nem vítimas, e sim diálogo e cooperação.
Nas mãos de democratas temos ao menos esperança de não guerra. Nas mãos de ditadores somente ódio e predisposição a resolver tudo pelas armas, desde divergências ideológicas ou sobre territórios.
Meu território era a Esplanada dos Ministérios, que se transformou em familiar com o passar do tempo. O Congresso eu visitava de terça a quinta e uma vez na semana ia ao Planalto. Itamaraty era meu ministério preferido, pela preparação excepcional de quase todos os diplomatas e, também quase familiar, sala de imprensa. Ali alimentava quase todas as informações necessárias para fazer uma boa cobertura internacional.
Os mais destacados jornalistas políticos e econômicos do país e vários do Exterior estavam em Brasília nestes dias e frequentavam os briefings do Itamaraty e do Planalto.
Era uma convivência enriquecedora e, em alguns casos, de grande amizade. Carlos Marchi, Orlando Brito, Marilena Chiarelli, José Fonseca Filho, Miriam Leitão, Carlos Conde, Sonia Carneiro, Mariangela Hamu, Walter Sotomayor, Maria Helena Tachinardi, Francisco Figueroa, Luiz Recena, René Villegas, Jota Alcides, Beto Stefanelli, Zanoni Antunes, Humberto Neto, Luiz Barbosa, Brenda Brennan, Irineu Tamanini, João Feichas Martins, Yuri Vespalko, Flávio Salles, Célia de Nadai, Laerte Rimoli, Peter Eisner, André Gustavo Stumpf, entre outros.
Imagem: Diplomacy or Force, Alamy
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