Fatos e Delírios - Guillermo Piernes
Hechos y delirios
05/10/2022 00:00
Capitulo 6 - UPI e Reuters (1967)
Escrever um texto claro, com o mínimo de palavras e o máximo de informação, com frieza, técnica, mas transmitindo emoção é a missão nas agências noticiosas.
Depois de Clarín, fui contratado como redator pela agência United Press International (UPI), em Buenos Aires. Aprendi muito, todos os dias, sobre fazer um bom lead e escrever o texto como pirâmide invertida. Duas ou três linhas com máximo de lead sintetizando tudo, depois outro parágrafo agregando dados em escala de importância, e, assim, até o fim. Não era um exercício mais de redação da minha faculdade, era para ser examinado por milhares. Esses leitores deviam ser bem-informados. Simples assim.
Eu estava de solitário plantonista num domingo, quando jogavam River e Boca no Monumental. Houve uma avalanche quando parte da torcida do Boca quis sair do estádio ao final do jogo. O portão 12 estava obstruído. Houve pânico, mortes. Saber exatamente quantos mortos era um dado fundamental que ninguém conhecia nesses momentos.
Avisei a um colega para ir urgente ao escritório. Peguei um taxi do escritório na Avenida Belgrano, perto da Casa Rosada, até o bairro de Nuñez e fui diretamente à delegacia onde chegavam às vítimas fatais.
Somente deixavam entrar a possíveis familiares. Para ingressar na delegacia, disse aos policiais que talvez tivesse um familiar nesse pátio donde imperava a morte. Não era mentira, porque faltavam identificar muitas vítimas. No chão do pátio, ombro a ombro, os corpos de homens e algumas mulheres, a maioria jovens. Fui fazendo a conta. Quando acabei, de um telefone público informei ao redator da matéria que eram setenta e uma vítimas fatais. Tantos homens, tantas mulheres. Tive que revelar como consegui entrar, porque na UPI queriam ter absoluta certeza do número. Contei como foi. O redator disse apenas: "bom trabalho".
Peguei outro táxi até a minha casa. No meu quarto chorei por um tempo. Tinha presenciado uma cena terrível. Na hora da ação, frieza. Lidar com os próprios sentimentos fica para depois. Parece cruel, porém é requisito.
Um dia William McCall, vice-presidente para América Latina da UPI, me chamou ao seu escritório. Eu estava fazendo um trabalho temporário para a Agência Mexicana de Notícias (AMEX). Disse-me que a Reuters buscava um jovem jornalista com experiência e que falasse inglês, para transformá-lo rapidamente em correspondente internacional. Se eu me interessasse que falasse com Patrick Cross. Paternalmente me explicou que na UPI o processo podia ser mais demorado para alcançar essa posição, pela limitação de vagas. Foi um gigantesco presente desse texano boa praça.
Apresentei-me a Sir Patrick Cross, chefe-mor da Reuters para América Latina e Cavalheiro da Rainha, no escritório na Avenida Corrientes. Após uma prolongada entrevista, fui integrado ao grupo de outros jovens jornalistas, escolhidos depois de centenas de entrevistas nos diferentes países. Iríamos iniciar a agencia Latin-Reuters.
O time era formado por: José Antonio Severo e Francisco Baker, do Brasil; Percy Gibson, do Peru; Juan Javier Zeballos, da Bolívia; Rodolfo Schmidt e José Antonio Mayobre, da Venezuela; León Roberto Garcia, do México, eu da Argentina e o coordenador Enrique Jara, do Uruguai.
A criação do grupo tinha o objetivo de fortalecer a cobertura regional como Latin-Reuters, formada como cooperativa entre os grandes jornais da região e o apoio da Reuters. Jornalistas latino-americanos informando sobre fatos de América Latina para latino-americanos. Foi uma preparação intensa, com estágios em Nova York, Londres, capitais latino-americanas, aprendendo e participando de toda a operação, junto a experientes correspondentes.
Em setembro de 1970, Sir Cross anunciou ao grupo de jovens jornalistas que, no mês seguinte, seríamos enviados a diferentes países. Inicialmente eu iria à Venezuela. O gaúcho Severo, colega da turma e depois fraternal amigo de toda a vida, mudou o curso. Comentou para o chefão que eu encaixaria perfeito no Rio de Janeiro. "Alright", foi o fleumático e único comentário de Sir Patrick Cross.
Na calorosa tarde de dezesseis de outubro de 1970 cheguei ao Rio de Janeiro, ao velho aeroporto do Galeão.
Choque alegre, porém, um choque. Eu lia perfeitamente português. No ensino médio era ensinado Latim e Francês, ambas originárias do latim falado no Império Romano como o português e o espanhol. Entendi só uns vinte por cento do que falava o motorista de táxi. Passei pelo escritório da Reuters para pegar a chave de um apartamento em Copacabana, com vista para o Corcovado, que tinham contratado para mim.
Nesse apartamento mergulhei no português falado. Sintonizava essas rádios que falam, falam, falam e falam, o dia todo. Até escutava no chuveiro. Também pratiquei português falado em outros momentos, que deixaram boas lembranças. Fugia das pessoas com as quais tinha de falar em espanhol ou inglês. A prioridade era o idioma local. Essa estratégia serviu muito para meu desempenho jornalístico.
Na primeira semana de dezembro de 1970, tive de fazer a cobertura do sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. A imprensa local sob forte censura, por ser assunto de segurança nacional. A Vanguarda Popular Revolucionária chefiada pelo capitão Carlos Lamarca foi responsável do seqüestro.
Eu estava com algum receio por ser responsável por matérias sobre o sequestro publicadas no Exterior, além de enviar notícias sobre as negociações para a troca do embaixador por presos políticos que, finalmente, foram enviados para Argélia. Além de sair são e salvo, me saí bem no uso do português.
Na prática, constatei que detrás dessa contagiante energia da cidade, que ainda vibrava com a conquista do Tri no futebol e ouvia a toda hora "Pra Frente Brasil / Salve a seleção", havia muito mais.
Meu trabalho foi retratar as muitas facetas curiosas de uma época e de uma sociedade. O faxineiro do prédio, por exemplo, vendia ações da Bolsa durante o rápido boom econômico. Para comprar um Fusca com entrega imediata, de muita procura, era fundamental ter conhecidos influentes. Por trás dessa euforia econômica, porem, havia muitas outras realidades.
O bar Amarelinho, na Cinelândia, vivia lotado de pessoas que conversavam despreocupadamente, em voz alta, de trabalho, futebol, música e amor, geralmente bebendo um "chope estupidamente gelado". Nada de política, porque ninguém sabia se algum delator estava sentado numa mesa.
Assaltos a bancos não podiam ser veiculados pela imprensa local por ser uma das estratégias da guerrilha para o financiamento das suas ações. Também censura quando se iniciou uma epidemia de meningite em São Paulo. Censura para o jornalismo, autocensura para todos. "Ame-o ou deixe-o" era um slogan claro dessa época.
A chamada grande imprensa brasileira de então, com desculpas pela generalização, mostrava uma característica que desconhecia. Dava proteção a jornalistas e artistas perseguidos pelo regime militar, inclusive pagando salários de pessoas que estavam sendo perseguidas, entre eles o poeta Ferreira Gullar.
Tive que fazer ponte entre executivos da Reuters e donos dos veículos. Assim conversei com vários deles, quase míticos, como Roberto e Rogério Marinho, do Globo e Júlio Mesquita do Estadão. Tratei com alguma frequência com Newton Carlos, Homem de Montes, João Saldanha, Alberto Dines e fui apresentado a Nelson Rodrigues, o que considero um luxo!
Fiquei atônito quando li pela primeira vez o Pasquim, pela sua irreverência completa, humor, inteligência e coragem para enfrentar o regime, lembrando que a publicação se autodenominava de oposição à "ditadura militar grega". Pelo fato de ser correspondente de uma importante agência noticiosa e pela minha amizade com Severo tratei com alguns craques desse semanário: Jaguar, Ziraldo, Luis Carlos Maciel, Carlinhos de Oliveira.
Em julho de 1971 fiz, no estadio Maracaná, a cobertura do último jogo de Pelé pela seleção do Brasil. "Fica... fica...fica...". Foi de arrepiar o coro de mais de 130.000 pessoas que lotavam o estádio. Eu estava no palco de jornalistas. "Fica...fica...fica..." ficou ecoando na minha cabeça. Custou fazer o artigo porque tanta emoção atrapalhava...Pelé atendeu o pedido. Ele ficou para sempre nas lembranças e no coração dos que amamos o futebol arte.
No Rio desses tempos, num domingo nublado, fiz para Latin-Reuters a cobertura do desabamento de parte do viaduto Paulo de Frontin que deixou quarenta e oito vítimas fatais e muitos feridos. O desabamento do viaduto inspirou Aldir Blanc compor seu antológico O Bêbado e a Equilibrista:
Caia, a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto, me lembrou Carlitos
A lua, tal qual a dona de um bordel
Pedia a cada estrela fria, um brilho de aluguel
Também participei do último baile de Carnaval no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Para mim era um sacrilégio, porém isso obviamente nada importava. Alguns poderosos amigos de generais achavam legal. Participei de ensaios de escolas de samba, entrevistei Gal Costa, Chico Buarque, Sérgio Ricardo e outras figuras da efervescente MPB.
Existia outra visão dos morros cariocas, com menos sangue e metralhadoras, mais poesia. Menos traficantes e milicianos, mais solidariedade e humanidade. Subir os morros vizinhos a Zona Sul estava longe de ser uma perigosa aventura.
Um juiz de nome Rosa pronunciou uma sentença inesquecível que retratou bem esse tempo. Um vizinho tinha ferido outro num morro junto à Zona Zul, batendo-lhe com um violão. O magistrado, após considerar que o réu tinha utilizado como arma um instrumento universal para cantar o amor, o condenou. Durante dez noites de lua cheia deveria oferecer uma serenata, na janela da sua vítima.
Como não ficar encantado e até encantar com crônicas de "aquele Rio que passou na minha vida..."
Minha base era o Rio, porém viajava muito. Fui enviado a Altamira, no Pará, para assistir a abertura da Estrada Transamazônica com o então presidente general Emilio Garrastazu Médici. Assisti as grandes clareiras sendo abertas na selva densa e parti dessa cobertura com o coração apertado, perante o avanço das poderosas máquinas que derrubaram árvores, destruíram ninhos, afugentaram animais, encurralaram indígenas, em nome de um futuro progresso que nunca chegou.
Um tempo depois fiz uma ampla reportagem sobre a Amazônia, entrevistando empresários, caciques, o bispo Pedro Casaldáliga, homens que viviam do extrativismo, indigenistas. Sabia que era um assunto mais do que delicado e fiz com todo cuidado para eliminar qualquer ponto de vista do escriba, apenas fiel às declarações e dando, a cada frase, atribuição ao autor.
No queria ter problemas com o regime militar. Alguém, porém não gostou do que eu escrevia. Recebi um chamado de uma funcionária da Secretaria de Imprensa de Itamaraty, me comunicando que meu tramite para renovar a credencial de correspondente estrangeiro estava "congelado". Em futebol, seria cartão amarelo.
Comuniquei a Latin-Reuters, que enviou um emissário a Brasília. Eu recebi a instrução de viajar e escrever sobre pontos turísticos do litoral nordestino até chegar uma definição. Pouco depois de retornar ao Rio de Janeiro, recebi um convite para jantar em Brasília com o Secretário de Imprensa do Ministério das Relações Exteriores, embaixador Guy Brandão.
Jantamos no restaurante de um hotel, não muito distante do Itamaraty. Falamos de música, literatura, pintura. O gentil diplomata não tocou no tema do conflito, durante o agradável jantar. Dois dias depois, a mesma funcionaria daquele perturbador telefonema me ligou novamente, avisando que a nova carteira estava a disposição.
Meses depois em Caxias do Sul, participei, acidentalmente, da inauguração da televisão em cores no Brasil. A transmissão era ao vivo e contava com a presença do presidente Garrastazu Médici. A chuva atrasou o horário do desfile, mas para manter a incrível audiência lograda pela novidade a transmissão seguiu no ar. Para preencher o tempo, os seis correspondentes internacionais presentes, entre eles eu, fomos entrevistados.
Quando retornei ao Rio as pessoas do meu prédio, do escritório, comentavam a minha aparição nesse momento histórico. Só faltou me pedirem autógrafos como acontecia com ao galão da TV da época, Francisco Cuoco.
Um herói diplomático
Na minha estreia em reuniões diplomáticas de alto nível foi em 1971, quando cobri a Assembleia Geral da OEA, na Costa Rica. Assisti a uma aula magistral de um diplomata brasileiro sobre defesa e respeito à imagem da instituição ou nação representada.
O regime militar brasileiro alimentava a ideia de uma força interamericana para afastar o perigo subversivo no continente e o Itamaraty tinha a dura missão de projetar a ideia para o continente.
O embaixador brasileiro perante a OEA, George Alvares Maciel, havia feito todas as sondagens e quase todas elas tiveram resultado negativo sobre a conveniência de criar essa força interamericana antissubversiva. Os representantes diplomáticos do Chile ao México, da Argentina a América Central estavam contra. Estados Unidos queria falar de outros temas menos esse. As ditaduras de Paraguai e Haiti eram as únicas em acompanhar a ideia dos militares brasileiros.
Numa das comissões, chegou à hora do então ministro conselheiro brasileiro (depois embaixador Ítalo Zappa) apresentar a iniciativa. Zappa falou num espanhol impecável, com domínio absoluto da sintaxe, uso de adjetivos, entonação perfeita, perante a maioria dos ouvintes de língua espanhola, para detalhar a ideia de uma força de intervenção.
Ao avançar a explicação, era óbvio que a iniciativa seria esmagada ao ser votada. O Itamaraty e a imagem do Brasil seriam duramente afetadas, numa votação avassaladora contra a ideia, com a neutralidade dos Estados Unidos e somente apoiada pelos governos de Alfredo Stroessner e Papa Duvalier, então considerados entre os mais cruéis ditadores da história continental.
Perto da meia-noite, a derrota parecia iminente e humilhante. Zappa se dirigiu aos tradutores e pediu que trabalhassem porque ia continuar a apresentação em português. "Evidentemente meu pobre castelhano induz a interpretações incorretas da proposta". A sala ficou em total silêncio, resumindo o desconcerto.
Zappa falou em português sobre a força do diálogo continental, a força pelo entendimento, a força de união, a força do diálogo.
Quando acabou a exposição ninguém pediu a palavra. Não houve votação e o tema foi discretamente deslizado fora da pauta do plenário. Não houve vexame para a diplomacia brasileira, que era, nesse tempo, uma das instituições mais admiradas. Foi o prêmio a uma criativa saída diplomática.
Ao deixar da sala, Zappa me pegou pelo braço. Explicou que cumpriu a instrução de apresentar a iniciativa. Agregou que teve de apelar a um "recurso heterodoxo" para evitar um vexame para o Brasil e para o Itamaraty. Pediu-me para tentar entender todo o quadro antes de escrever para os clientes da a agência na América Latina. Sim, entendi.
Escrevi sobre os pontos concretos, as resoluções da comissão. Escrevi sobre fatos. Um desentendimento linguístico não é notícia. O vexame de uma grande diplomacia, esse sim, seria noticia, o que não houve. Se Zappa tivesse comandado o Titanic, estou certo, teria evitado a tragédia.
Imagem: Planeta Terra, Marcos Rodrigues
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