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Fatos e Delírios - Guillermo Piernes
Hechos y delirios
Capitulo 5 - A primeira crônica

05/10/2022 00:00




­Capitulo 5 - A primeira crônica   (1965)

Escrevi trinta linhas corretas, porém sem transmitir o sangue, suor e lágrimas que tinham custado ao autor por saber que seriam lidas por milhares.

Aos dezenove anos anunciei ao meu pai que seguiria jornalismo no estudo e como profissão. Ele não gostou muito. Comentou que era uma profissão perigosa em termos de segurança física e difícil para manter o emprego. Que sacrificava a família pelos baixos salários. Que eu podia ser um excelente advogado e viver uma boa vida. Que era pesado o fardo de carregar um sobrenome conhecido nessa profissão. Tinha razão, porém, pela primeira vez, meu pai não me convenceu.

Por um colega de estudos soube que na seção de Esportes de Clarín precisavam de mais um cronista para fazer a cobertura de jogos de futebol. Era para falar com o editor, Nestor Ruiz.

Não somente falei com Ruiz e disse que estava muito interessado, como acho que até implorei por uma oportunidade. Num domingo fui enviado a fazer a crônica do jogo Platense-Rosário Central. O goleiro de Rosário Central era Edgardo Andrada, que depois foi para o Vasco da Gama e sofreu de pênalti o gol número mil de Pelé. Escrevi trinta linhas corretas, porém sem transmitir o sangue, suor e lágrimas que tinham custado ao autor. Nunca mais deixei de ser cronista.

A redação do Clarín, que na época vendia um milhão de exemplares diários, era gigantesca. Máquinas Olivetti de metal em cada escritório. A seção de Esportes tinha umas trinta. Os veteranos e os novos escreviam suas crônicas, as colocavam num cesto na mesa de Nestor Ruiz, que as lia e as mandava para a oficina.

A cada tanto o editor levantava a voz com comentários tipo: "Que texto primoroso e poético, mas vale nada se não tem o resultado, refaça ...Tive de ler 60 linhas para saber quem ganhou, refaça...Este um texto que nos lembra a Shakespeare, porém o fruteiro da esquina não vai entender, refaça ... ". Os autores identificados iam até a mesa do editor para refazer o trabalho. Eu fui chamado várias vezes. Voltava à minha máquina quase chorando de frustração.

Depois de alguns meses deixei de ser chamado a esse escritório para levar um puxão de orelhas. Em um domingo, o editor, com um gesto, me chamou à sua mesa. Secamente, disse: "Me ajuda a corrigir esses analfabetos" e passou para mim um monte de matérias. Uma disfarçada promoção. Para mim, a glória.

Ao excelente técnico Juan José Pizzuti devo muito da minha boa carreira no jornalismo esportivo. Estávamos em 1966 e eu tinha crescido um pouco como cronista volante de futebol do Clarín, recebendo por matéria publicada. Um palpite futebolístico meu sobre o time de Racing Club, conhecido depois como El equipo de José, ajudou muito na carreira.

Na primeira rodada do campeonato, fui indicado para cobrir a partida Racing-Estudiantes. Tinha que acompanhar Diego Lucero, um escritor comparável a Nelson Rodrigues. Ele escreveria uma longa crônica do jogo e eu tinha trinta linhas na diagramação do suplemento esportivo para coletar a opinião de técnicos e jogadores no vestiário.

No seu campo em Avellaneda, o Racing venceu o Estudiantes. Foi um dois a zero que poderia ter sido muito mais, pois o time jogava um futebol nunca visto antes. Todos atacavam. Para defender, ficavam o zagueiro Perfumo e o goleiro Cejas (que foram meus amigos e mais tarde jogaram no Cruzeiro e no Santos).
Todos subiam. Os ponteiros eram na realidade quatro, porque os laterais sempre subiam. Ao chegar à linha de fundo ou perto dela, partia o lançamento para a área. Chegavam vários. Assim o tempo todo. Emoção e sede de gol sem trégua.

Desobedeci à orientação. Não fui ao vestiário. No espaço de trinta linhas a mim designado, sob a manchete "A equipe de José", descrevi o jogo de um time diferente a de todos os outros. O brilhante editor Ruiz, que fechava as páginas, não acreditava que eu não tivesse as declarações do vestiário. Custou acreditar que eu tinha usado o espaço para comentar que havia nascido uma equipe quase invencível. 

Fui castigado pela indisciplina, devia acompanhar todos os jogos de Racing. Assim foi. Racing passou trinta e nove jogos sem perder e conquistou o titulo de campeão argentino 1966. Foi campeão da Copa Libertadores e da Copa Intercontinental 1967. Uma trajetória gloriosa. E eu me acostumei a visitar a primeira página.

Fiquei com a fama de ser um jornalista de visão. Eu sabia do peso enorme da sorte.


Navegar é preciso

"...Depois de amanhã você vai a Montevidéu para cobrir o Mundial de Iatismo da classe Snipe", me comunicaram na Seção de Esportes do jornal. O dono do Clarín, Roberto Noble, amava velejar e tinha sugerido a cobertura do evento. O novato não tinha possibilidade alguma de dizer não.

Essa classe Snipe não existe mais com as modificações das regras olímpicas para os veleiros. Eu não tinha ideia de nenhuma classe de veleiros. Em contrapartida, o dono do jornal sabia tudo.

Cheguei ao Yatch Club de Montevidéu, na Playa Del Buceo, carregando minha ignorância de como fazer uma cobertura onde os veleiros se perdiam na imensidade do Rio de La Plata, sem que soubesse onde ficava a linha de chegada.

Como cheguei um dia antes das provas, fiquei no bar até que os velejadores voltassem de suas velejadas de treino. Bebiam, riam e contavam suas peripécias nos pequenos veleiros. Observar frequentemente ajuda mais que ter imaginação.

Foquei num velejador argentino de uns trinta anos, obviamente um quase velho para mim nesse momento, que me pareceu calmo e inspirava confiança e que tinha ficado sozinho numa mesa bebendo um suco.
Fui até essa mesa e, depois de me apresentar como jornalista do Clarín, confessei. 

Contei toda a verdade, sem ocultar a minha completa ignorância em iatismo, vela, classe Snipe e tudo o que o rodeava. Contei do leitor especial que tinha que deixar satisfeito para que a minha incipiente carreira não afundasse. Tudo verdade.

O velejador, cujo nome injustamente não volta a minha memória, ficou surpreso pela confissão. Sorriu quando acabei. "Fica tranquilo, vou te ajudar e vai dar certo. Aparece todos os dias em volta das 15 horas que te conto tudo", foi a resposta.

Todas as tardes ele me relatava as regatas, as mudanças dos ventos, como fulano aproveitou o bombordo, como outro tinha recolhido a tempo as velas. Enfim, eu tomava nota palavra por palavra. Não mudava uma. Apenas colocava as classificações e transcrevia nas crônicas o mais técnico dos relatos, sem depois entender o que tinha escrito. Não importava. Eu escrevia nesse momento para um homem que entendia e amava iatismo. Era, simplesmente, o fundador do jornal.

Sabia que minha incipiente carreira como jornalista estava fora de controle, que dependia dos ventos. A crônica da vitória do americano Ralph Conrad como campeão da classe Snipe foi à última crônica enviada de Montevidéu.

Dois dias depois do meu retorno a Buenos Aires, o Dr. Noble desceu à redação como fazia uma vez por semana. Alto, muito elegante, com os cabelos brancos impecavelmente penteados. Noble passou também pela Seção de Esportes. Falou com meu chefe rapidamente e se dirigiu à minha mesa. "boa cobertura" e me deu a mão. Foi como ser condecorado.

Às vezes, a verdade triunfa.
Em bicicleta na Cordilheira

Outra aventura: como eu era voluntário para toda missão jornalística fui enviado à Primeira Travessia da Cordilheira de Los Andes, uma corrida em bicicleta ao estilo Tour de France. Participaram ciclistas de toda a América. O percurso teve como ponto de partida e chegada à cidade de Mendoza, passando por várias localidades de Argentina e Chile, até Viña Del Mar, no Pacífico.

Vinte etapas na pré-cordilheira, alta montanha e nível do mar, em três semanas de competição. Os ciclistas subiram até 4.000 metros de altura para atravessar pelo túnel de Las Cuevas para o lado chileno. Depois desceram vertiginosamente, em marcha livre, o caminho Los Caracoles, de uns 3.000 metros que leva da montanha ao vale, com umas 60 curvas junto ao precipício.

Ninguém morreu nessa arrepiante descida, e nós que ocupávamos veículos de apoio acompanhamos em silêncio.

A estrada ainda era, em boa parte, de cascalho. Cada queda deixava dolorosas feridas. Na primeira etapa o campeão de velocidade de Puerto Rico, ilha onde não existiam provas de ciclismo de longa distância, caiu e ralou toda a espalda. Não quis abandonar porque explicou que era o campeão da sua ilha e se abandonasse o ciclismo ia perder força. Seguiu até o fim sem camiseta porque estava em carne viva. Finalizou a prova, esgotado. Foi direto a um hospital onde passou três dias em recuperação completa.

Eu viajava na ambulância e assisti a outro episódio de coragem limítrofe com doidice. A quatro quilômetros do fim da etapa, em Las Cuevas, na volta e ainda em território chileno, um ciclista desse país sofreu uma violenta queda.

O joelho direito estava sem pele, ele chorava de dor. Os dois médicos limparam a ferida e aplicaram um analgésico. Depois de 15 minutos, o ciclista mancando revisou a sua bicicleta. Não acreditei quando montou nela. Em subida, no cascalho, ferido, ele completou a etapa. Eu não sabia se aplaudia ou chorava. 

Nada disso, escrevi com o coração. As crônicas da corrida, com fotos espetaculares no meio da cordilheira, precipícios, ciclistas heróis foram publicadas no principal jornal argentino. O ítalo-argentino Delmo Delmastro foi o heroico vencedor. Voltei a Buenos Aires com provas do que conseguem homens com fé e determinação.

Já em Buenos Aires, o editor Ruiz me convidou para um uísque e confessou: "Teu pai tinha me pedido para apertar você sem piedade ... Disse que não queria um jornalista fraco como filho. Hoje liguei a ele e lhe disse: relaxa, teu filho é bom". Meu destino profissional estava selado.

Imagen: Young Writer,  Pintor americano não identificado



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