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Fatos e Delírios - Guillermo Piernes
Hechos y delirios
Capitulo 3 - O jornalista

05/10/2022 00:00




Capitulo 3 - O jornalista    (1961)

Em suas linhas dançavam as palavras com elegância e clareza para transmitir aos leitores o vulcão de sensações, alegrias e penas dos seres envolvidos nos seus relatos

Seria muito difícil eu não ter virado jornalista. Eu adorava o meu pai e ele era Justo Piernes, um dos mais importantes nomes do jornalismo da Argentina. Quando escrevia para o jornal Crítica me carregava em algumas de suas coberturas e os domingos, para assistir um clássico de futebol. Na sua companhia conheci artistas, presidentes, grandes futebolistas.

Eu achava fascinante viajar com ele, assistir grandes espetáculos, vê-lo falar com personalidades e depois saber que as suas versões de tudo isso eram lidas por milhares. Nas rodadas com colegas, onde também me levava, ouvia histórias divertidas, importantes, algumas inconvenientes. Todas ricas para um menino, que sonhava crescer e ser jornalista.

Desde os meus seis anos ficava extasiado, repassando todos os jornais que chegavam em minha casa, com reportagens desde Paris, Londres, Tóquio, Nova York. Lia nos intervalos entre a escola, os deveres e meus estudos de inglês, ouvindo os conselhos do meu velho:: "sempre tens de saber comunicar-se no idioma dos chefes". Eu queria ser como esses que estavam em lugares distantes, escrevendo matérias sobre coisas tão diferentes como jogos, guerras, danças, costumes.

Aos 16 anos, recebi o diploma de datilógrafo, o que me permitiu ter pleno acesso à máquina Underwood modelo 1925 do meu pai. Ele me incentivou a fazer esse curso de datilografia, em paralelo aos meus estudos de segundo grau no colégio Nicolas Avellaneda, no bairro de Palermo.

Don Justo achava que, se no futuro eu encarasse alguma profissão intelectual deveria escrever muito rápido "para que todos pensem que você é inteligente". O velho estava certo. Até hoje muitos confundem velocidade com inteligência. Vou me alongar um pouco sobre a importância desse personagem único: o jornalista Justo Piernes.

Como poucos, ele soube retratar os cenários da Argentina e do Brasil. Seus povos, essa mistura de raças em terras generosas, exploradas e cenários de monumentais injustiças. Justo Piernes foi um jornalista comprometido com a verdade.

Em suas linhas dançavam as palavras com elegância e clareza para transmitir aos leitores o vulcão de sensações, emoções, alegrias e dramas dos seres envolvidos nos seus relatos, e precisão para narrar processos políticos.

Era mestre em pintar as contradições. Foi premiado por suas reportagens sobre as milionárias negociatas na exportação de carne durante o tempo da Argentina riquíssima, mas com a maioria do povo vivendo em pobreza. Descrevia o cotidiano drama dos excluídos, os conchavos dos carrapatos do poder. Fez uma inolvidável crônica de um povoado que celebrou a chegada de água potável no mesmo dia que o homem chegava à Lua.

Suas coberturas internacionais tiveram impacto histórico.

Em 1961, Justo cobriu com maestria, diretamente do Palácio Piratini, em Porto Alegre, os eletrizantes da Campanha da Legalidade chefiada pelo governador gaúcho Leonel Brizola para empossar a João Goulart como presidente do Brasil, quando um setor do Exército se opunha. O Palácio quase foi bombardeado.
Goulart viajou a Brasília e foi empossado como presidente. A aceitação de Goulart em um regime especial parlamentarista evitou o derramamento de sangue. Em poucas horas o país retornou à normalidade. Justo encerrou a missão com uma colorida crônica do clássico Gre-Nal. "Fui cobrir uma possível guerra civil e acabei comentando um grande jogo de futebol", sintetizou.

Em 1967, quando em La Paz, foi o primeiro a noticiar que o Che Guevara estava encabeçando a guerrilha na Bolívia, quando o mundo pensava que ele tinha sido preso ou morto por desentendimentos com Fidel Castro. Poucos acreditaram, até a demorada confirmação por parte das autoridades bolivianas.

Em 1972, enquanto estava em Quito acompanhando uma visita do presidente argentino general Alejandro Lanusse enviou a primeira notícia sobre o plano dos militares para derrubar o presidente Velasco Ibarra. Foi detido na capital equatoriana. Somente a intervenção direta do Lanusse possibilitou o seu retorno a Buenos Aires.

Dias depois, Velasco Ibarra foi derrubado pelos militares e chegou exilado a capital argentina. Visitou o Clarín para felicitar o autor da matéria, declarando que teria impedido o golpe de estado se tivesse acreditado na notícia enviada por Justo.

No jornal Clarín, criou a coluna Miniturismo onde revelou, longe dos holofotes, pequenos lugares cheios de vida, poesia e cor, de histórias de homens e mulheres sem vez e lembrados apenas em tempo de eleições.

Era um intelectual que sabia chegar à alma do povo que o lia. Assim, escreveu as melhores crônicas de futebol, porque sabia que a emoção do jogo dribla as torpes rotinas e sacode as fibras vencedoras dos que sempre perdem. Iluminou a muitos e irritou a vários.

Em 1976, teve que partir para o Brasil com a roupa do corpo, para não ser assassinado por um grupo de extermínio da época o bloco fascista radical, a Triple A. O grande jornal para o qual trabalhava o demitiu por "abandono do trabalho". Eram anos de chumbo.

No Rio de Janeiro, Justo conseguiu trabalho como correspondente da agência espanhola EFE. Escreveu matérias impecáveis sobre o processo de redemocratização. Quando o então presidente João Figueiredo liberou o retorno de exilados políticos brasileiros, o exilado Justo o presenteou com uma camisa do San Lorenzo, time campeão em 1933, onde jogaram os dois primeiros brasileiros do futebol argentino, Petrolino e Valdemar.

Figueiredo e Justo foram torcedores desse time quando adolescentes em Buenos Aires. O presidente viveu vários anos na capital argentina com o seu pai, o general Euclides Figueiredo, um dos chefes militares no levante paulista contra o governo de Getúlio Vargas, em 1932.

Quatro anos depois de Justo sair da Argentina, um homem com sotaque portenho fez contato telefônico com ele no Rio de Janeiro.

Disse ser leitor de suas crônicas de futebol. Convidou-o para uma cerveja. Na mesa chegou à revelação: Como assassino profissional recebeu a ordem da Triple A de matar Justo por ser um jornalista que incomodava.

O pistoleiro profissional não escolhia os alvos apenas planejava para não falhar nas missões dadas. Relatou que como pistoleiro profissional tinha escolhido o local e o momento para a eliminação de Justo Piernes. Iam ser dois tiros com silenciador no elevador do Ministério de Economia, que o jornalista visitava no fim da tarde para conversar com suas fontes.

Pela primeira vez decidiu dar uma chance a um alvo para escapar. Foi uma fraqueza que teve uma curiosa explicação.

Confessou que adorava e se emocionava com as crônicas de futebol de Justo. Por isso fez tudo para que saísse do país antes que tivesse de executa-lo. Num telefonema ao jornalista listou os lugares e horários onde tinha estado na última semana. Convenceu-lhe que era uma ameaça para ser cumprida. Justo pegou o primeiro avião para o Brasil.

Na mesa da cerveja no Rio, o arrependido agente de extermínio relatou que ele também teve de fugir porque na Argentina estavam apagando arquivos e ele sabia demais. Pediu-lhe perdão. Justo perdoou o seu quase assassino. Nunca mais soube dele.

Anos depois o jornalista voltou à sua cidade natal. Retornou sem rancor. Justo morreu de infarto fulminante numa fria manhã de julho de 1989. Foi o dia mais triste da minha vida. E um dia triste para seus muitos amigos. Entre eles, Astor Piazzolla.
Imagem: Maquina de escrever, autor não identificado



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