Poemas
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27/04/2023 00:00
Como gostaria morrer
Por Guillermo Piernes **
Careço da experiência de morrer, pelo menos conscientemente. Tal vez já morri e renasci mil vezes e fui pássaro, flor, peixe ou rinoceronte, grão de arroz.
É uma discussão na qual a Humanidade se embrenhou desde sempre, sem uma resposta definitiva aceita pela maioria.
Como conscientemente tenho certeza que algum dia vou morrer, decidi enumerar cinco formas que preferiria morrer. Faço a resalva que está longe de mim à escolha. É com Deus, Deuses, Universo, Destino, Natureza, outro tema em que a Humanidade nunca chegou a lograr unanimidade.
Sim, poderia me suicidar. Essa forma não está entre minhas prioridades. Não gosto de matar pessoas, animais, plantas, e muito menos matar um ser com que tive de conviver desde o útero materno ate o momento de escrever estas linhas, eu mesmo. Foram muitos anos, porem esse relacionamento, com graves crises e enormes alegrias, não é o tema central desta crônica.
Nesta vida, inspirado pelas leituras e o exemplo do meu pai, tentei ser um cavalheiro com coragem, lealdade e cortesia. Lógico que em várias ocasiões falhei. Sou humano, e por essa condição humana, vou morrer. Se fosse pedra duraria mais e, tal vez, livraria leitores desta minha crônica final.
Desde que venci na corrida pela minha vida, onde participaram uns oito milhões de espermatozoides e todos morreram, passei a não temer a Morte. Eu consegui chegar ao cobiçado óvulo para iniciar a longa jornada que me levou até hoje e devo confessar que essa foi uma oportunidade gigantesca para a glamourosamente desenhada Dama de Negro, de acabar comigo.
Dou fé que estive cinco vezes a um passo que acabasse esta minha vida - a vida atual. A acredito que até tenho certa simpatia da Morte, que já mostrou que não me quer me pegar antes da hora. E olha que foram oportunidades excelentes, sem contar as que eu não percebi.
A primeira foi ao nascer numa época de baixa tecnologia na medicina, num parto totalmente desfavorável para a criança. Já tinha sido condenado para preservar a vida da mãe, porem uma quase milagrosa intervenção - ou sem esse quase - permitiu meu nascimento. Dessa experiência nada lembro, apenas os emocionados relatos maternos sobre o episódio.
A segunda foi na adolescência, quando era um atleta e sofri uma intervenção cirúrgica para extrair amígdalas. Tive uma hemorragia ao voltar a minha casa. Fui levado às presas, desmaiado, ao hospital. Cauterizaram e me mandaram de volta a casa. Nova hemorragia e nova corrida, agora semiacordado para a UTI. Ouvi os dois médicos xingando, quase histéricos, por receber um jovem semimorto, por uma série de erros.
Pareceu-me enxergar uma ponte muito iluminada que saia da sala e senti quase levitar na sua direção. Não senti nada de medo, apenas pensei que pouco tinha vivido para ir à outra dimensão. Antes de chegar nessa ponte de luz tão forte, acordei. Vi um médico inclinado sobre mim que acariciou meus cabelos e disse: "menino, você vai ficar bem logo, mas foi por muito pouco. Teu coração foi incrível".
Esse coração me colocou também em situações altamente complicadas após esse incidente, porem não vem ao caso criticar esse coração apaixonado, como permanente reconhecimento do seu trabalho sem paradas, em prol da minha vida, bastante longa e emocionante.
A terceira vez foi durante uma cobertura jornalística no coração da Amazônia. O avião de quatro lugares que levava a equipe de UPITN, ia a aterrizar numa estrada de terra aberta na alta floresta. Quase tocando o solo, um camião carregado de madeira surgiu na frente. Eu estava no lugar do copiloto. A metros do impacto, o piloto consegui levantar novamente voo, roçando com as rodas o teto do veículo. O avião passou entre as árvores de mais de 40 metros de altura, até chegar a céu aberto. Por centímetros, podería ser sido o fim. Não foi.
A quarta vez foi quando depois de uma torturante etapa de fim de relação - com o ódio cegando a ex -, entreguei a ela um revólver calibre 38, carregado e engatilhado. "Ou você me mata agora, ou acabamos com essa briga. Basta apertar o gatilho". A briga acabou. Eu segui com vida, depois dessa estupidez, sem renunciar a me apaixonar.
A quinta vez foi quando eu dirigia sozinho numa estrada, em alta velocidade, arrasado após perder um grande amor, esse que a gente procura a vida toda e finalmente parece que aparece. Meu carro derrapou ao atravessar uma grande poça de água e bateu na proteção que divide as faixas da rodovia que leva de Brasília a Rio de Janeiro. O veículo voou e deu quatro voltas completas no ar. Grudado ao volante vi tudo em câmara super lenta, magicamente lenta.
Com o carro girando no ar, pedi também lentamente: "Deus me ajude", confirmando minha resignação e impotência de simples mortal, certo que não sobreviveria o impacto no inevitável contato com o asfalto. Tudo indica que fui ouvido. Tiraram-me do carro totalmente destruído, salvo o lugar do piloto. Apenas um golpe leve na coxa foi constatado nos múltiplos exames realizados no hospital. No dia seguinte, segui viagem, de ônibus.
Para evitar que um leitor irritado pelo ritmo da crônica, nestes tempos de tanta tecnologia para matar, o faça, vou rapidamente listar minhas formas preferidas para dar um fim a esta vida. Antes preservo o meu direito de esperar renascer muitas vezes e de viver muito mais e bem, na vida que ainda tenho.
As minhas preferências para morrer, são as seguintes:
Sem dor, nos braços de um ser amado.
Rápido, bebendo um vinho e ouvindo boa música.
Fulminante, sonhando com meus seres queridos.
Por um raio, na praia, encantado pelas ondas do mar.
Após olhar as estrelas e agradecer pelo vivido.
** Guillermo Piernes escritor, jornalista e diplomata
* Pintura de Ana Helena Reis, talentosa escritora. Ver Pincel de Crônicas
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