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07/06/2023 00:00
O matuto do límbico grande
Guillermo Piernes **
Ze Henrique chegou aos 24 anos. Alto, com corpo de músculos definidos pela genética e por carregar caixas de abacaxi para seu Inaldo, que distribuía a fruta em boxes do mercado de abastecimento de João Pessoa. A pele bronzeada pelo sol do brejo da Paraíba, cabelo liso e preto, e um sistema límbico hipertrofiado desde seu nascimento, um 6 de novembro, perto de Lagoa Tapada, Paraíba.
Ele desconhecia que o sistema límbico responde pelos comportamentos instintivos, pelas emoções profundamente arraigadas e pelos impulsos básicos, como sexo, ira, prazer e sobrevivência, que regula os sistemas corporais. Mas ele era conduzido impiedosamente por esse sistema.
Esse sistema límbico hipertrofiado desde o nascimento e a alta testosterona no seu corpo explicariam sua obsessão pelo prazer, quase sempre negado pelas religiões e pelos rígidos padrões sociais, também negado por todo indivíduo com medo de ser feliz.
Ele morava na roça, perto de Sape, localidade que aportou a cultura brasileira três grandes produtos: O abacaxi doce como nenhum outro, Cachaça Preciosa do Vale e o poeta Augusto dos Anjos, que morreu jovem após escrever dúzias de poemas belos e tristes, na linha do americano Edgard Alan Poe.
Ze Henrique tinha lido pouco ou nada do poeta, porem adorava abacaxi que comia em fatias pela manhã e que assava na brasa pela tarde. Ele agregava pimenta calabresa, sal e um pouco de azeite extra virgem, um luxo entre os seus pares, porem que não podia faltar na sua mesa. Ele apreciava um copo diário da cachaça local envelhecida em tonéis de madeira de umburana, em tanto ouvia música.
Tentava escrever para emular o principal expoente da literatura do local, que a sua professora Roseane tinha apresentado no terceiro grau. Foi o último que conseguiu frequentar porque seu pai morreu e teve que sair a lutar pela sobrevivência da sua mãe e uma irmã menor. Tentava, tentava e tentava, porem não conseguia levar as suas emoções ao papel. Nem juntava dez palavras sem cometer erros ortográficos. Mas tentava melhorar recorrendo a um velho dicionário. Buscava ser, sempre, um pouco melhor.
Um "matuto meio diferente", definia a sua mãe. Sua tia, fanática do zodíaco, explicava que por ele ser do segundo decanato de Escorpião, era tão apaixonado. Advertia sobre a tendência desses indivíduos a tornar em realidades suas fantasias e materializar seus desejos.
Ze Henrique, desbordado pela sua escorpiana criatividade, era um bom amante para suas três amigas íntimas. Ele levava de moto suas amigas para encontros apaixonados no canavial, as margens da represa. Também usava a modesta casinha do amigo Zeca, na estrada que conecta Sape a Mari, cedida todas as quartas e quinta-feiras, quando o proprietário viajava a trabalho até Campina Grande.
O sistema límbico hipertrofiado o levava também a realizar suas fantasias sexuais no pequeno bordel perto da estrada, com as moças e as veteranas que integravam o elenco de profissionais. Todas elas o apreciavam porque era gentil e na hora crítica respondia como poucos.
Lulu era a sua preferida. Ela tinha sido batizada como Maria Lucia numa igrejinha da vizinha Sobrado. Alegre e incansável nos seus 22 anos, adivinhava e tornava cada desejo, cada fantasia do escorpiano avantajado, em realidade e com todo prazer. Tinha olhos azuis, cabelos curtos castanhos, uma bunda empinada e dura e seios médios, com auréolas pequenas e rosadas.
Ze Henrique, como a maioria dos seus conterrâneos, tinha ascendência ibérica, potiguara e tabajara. Também carregava alguns genes africanos de um avó que não conheceu. Esses genes se concentraram numa parte do seu corpo que era exposto somente nos seus frequentes encontros íntimos. Nenhuma das suas parceiras nunca reclamou da genética africana. A maioria até ficou entusiasmada pela particularidade que se destacava contra a pele de fundo que nunca foi exposta ao sol.
A vida do jovem transcorria ardentemente mansa ou mansamente ardente até uma tarde que faltou farinha de mandioca, para preparar sua tapioca.
Foi ao supermercado na sua moto vermelha. Quando passou pelo caixa ficou deslumbrado pela jovem de cabelo negro e longo, de boca grande e sorriso franco. Não lembrou ter visto uma mulher tão linda e atraente.
-- Você é daqui? Nunca vi você antes.
-- Cheguei de Bananeiras a semana passada. Vim para ajudar no caixa ao meu tio, o qual é o dono do mercado.
-- Você deve se chamar Vénus...
-- Não, nome de planeta, não. Meu nome é Juliane.
-- Eu arrisquei Vénus, que era a deusa do amor e a formosura para os romanos. Ao lhe ver pensei que eu tinha nascido em Roma ....
A jovem acusou o golpe. Abriu ainda mais seus olhos grandes e negros e deixou escapar um leve suspiro. Ze Henrique aproveitou a momentânea fragilidade da moça. A convidou para lhe mostrar as principais atrações de Sape, quando fechasse o caixa. Juliane aceitou.
Passearam frente à igreja principal. Beberam caldo de cana e comeram um par de salgadinhos num ajeitado bar no centro. Ela contou um pouco da sua vida pacata, filha de um pequeno comerciante e de uma professora na escola municipal. Contou dos seus sonhos de passar férias numa praia, de jantar num restaurante elegante e de aprender a tocar piano. Ele a ouviu atentamente, fazendo perguntas e agregando comentários que reforçavam esses caminhos de liberdade e prazer.
Depois de caminhar junto a antiga e abandonada linha do trem que atravessa a cidade e sentar num banco de cimento, tentou beija-la. Docemente Juliane o rejeitou. "Desculpa eu vou devagar. Você e um rapaz bonito, divertido. Eu gosto muito de você porem ... vamos com calma". Ele imediatamente pediu desculpas. O percurso seguiu animado entre risos e olhares carinhosos.
Ao dia seguinte, enquanto carregava as caixas de abacaxi num caminhão capaz de transportar 6.000 frutas, Ze Henrique sentiu-se diferente. Não parava de pensar em Juliane, nos seus avantajados seios, na sua boca sensual. Mas também na musicalidade da sua voz, nas suas historias carregadas de ternura. Na possibilidade de ajudar a Juliane a realizar os sonhos de praia, de jantar elegante e do piano.
Perguntou-se que era aquilo. "Não, não e não", disse em voz alta. Não podia acontecer com ele. Sentir uma atração animal primitiva era normal, quase rotineiro, mas estar interessado nas historias, nos sonhos, seus gostos de roupa, de comida, era demais. Seu sistema límbico parecia estar sendo traído ao serem ativadas outras regiões pouco utilizadas do seu cérebro.
"Não, não e não, não posso estar apaixonado", recriminou-se ao subir o último caixão de abacaxi no caminhão.
Decidiu rapidamente. Voltaria a ser o Ze Henrique verdadeiro. Ao dia seguinte levou uma amiga para a casinha que Zeca emprestava. Enquanto tirava a blusa da moça desejou que fosse Juliane. Fez um sexo mecânico, sem criatividade. Somente queria estar nos braços dela. Quando acabou a atividade, ainda na mesma cama, seguiu pensando nela. Imaginou andar de mãos dadas na praia, de passar seu braço no seu ombro após um jantar chique com um piano de fundo. Vontade de ouvi-la, de beija-la, de lhe fazer sinceras juras de amor.
Três dias depois voltou ao mercado. Juliane não estava no caixa. Juntou coragem e procurou o tio dela para indagar onde podia encontrá-la. "Voltou a Bananeiras", foi a resposta seca do desconfiado homem. Ze Henrique teve vontade de sair voando para Bananeiras. Era muito difícil porque, querendo ou não, era o chefe e sustento da família. Descarregou a sua ira e frustração chutando uma laranja caída na porta do mercado.
Ao dia seguinte falou com o seu Inaldo para que o liberasse pela tarde. "Sem problema", disse o patrão que tinha grande consideração por Ze Henrique, pela capacidade de trabalho, honestidade e bom humor.
Depois do almoço, Ze Henrique teve vontade de entrar num boteco e encher a cara de cachaça. Não era a sua praia e descartou a ideia. "Que desmantelo", pensou e também "como posso diminuir a dor...?" Uma dor até então desconhecida. Saiu caminhando rápido para o bordel.
Dona Ruth, proprietária do estabelecimento, perguntou a seu cliente frequente o que acontecia, porque reparou nas olheiras profundas, no olhar sem brilho. "Apenas muito trabalho", respondeu sem convencer a traquejada dona Ruth, nem a ele próprio. Perguntou se Lulu estava disponível. "Sim, esta no quarto dela".
Bateu na porta entreaberta e Lulu o recebeu alegremente. Desta vez, Ze Henrique não fez piadas nem contou historias. Tirou a roupa lentamente e nem olhou quando Lulu ficou nua ao pé da cama. Lulu nada disse. Tomou a cabeça de Ze Henrique e a colocou suavemente sobre seu peito. Acariciou seus cabelos e quando o ouviu chorar, também chorou. Sem palavras. Ficaram abraçados até cair à noite.
Um ano depois, Ze Henrique e Lulu ficaram juntos. Mudaram para Cabedelo. Alugaram uma casa, com um quarto para a mãe e Irma dele. A casa fica perto do porto, onde abriram um comercio de frutas, atendido por toda a família, a cem metros da praia de água limpa e morna.
As tardes de maré baixa, eles caminham até a praia de Camboinha, rindo, trocando ideias e olhares e ao mergulhar no mar, caricias indecentes.
Na lua cheia, o casal janta na praia. Ze Henrique e Lulu bebem um pouco de cachaça Preciosa do Vale e uma cerveja para acompanhar o peixe grelhado. Ouvem boas musicas de piano gravadas num pen drive. Deixam o som baixo para poder escutar também as ondas quebrando na areia, iluminadas pelo luar. Dançam algumas musicas lentas, com os corpos colados e os lábios próximos, sem se beijar.
Nessas noites, na volta a casa, eles fazem sexo desenfreado. Para eles somente fazem amor e querem que esse amor dure a vida toda.
** Guillermo Piernes: escritor, jornalista e diplomata
* Pintura, Amolação interrumpida - José Ferraz de Almeida
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