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12/10/2023 00:00
O alto preço do talento
De Guillermo Piernes **
O talento cobra um alto preço e são poucos os que têm a coragem de pagar. Um caso fascinante é o do Gabriel Garcia Marquez, prêmio Nobel de literatura, autor do maravilhoso "Cem anos de solidão", entre outros grandes livros.
Eu tive o gigantesco privilégio de entrevistá-lo para a agência de noticias UPI, quando visitou Brasil, na década dos 70. O Gabo era, é e será até o fim, meu ídolo literário. Foi marcada uma entrevista de 40 minutos num bar da zona sul do Rio de Janeiro.
Cheguei pontualmente, olhei as mesas e não vi esse inconfundível rosto. Caminhei até o fundo do bar e nada. Quando virei, o encontrei sozinho na mesa que ficava na frente da porta de entrada pela qual eu tinha passado, ansioso. Apresentei-me e pedi desculpas por não achá-lo no lugar mais exposto. Após estreitar minha mão, me disse "não ligue, quase sempre não enxergamos o obvio".
Como sincera introdução a reportagem declarei minha fascinação pela sua "gigantesca imaginação". Gabo me corrigiu imediatamente: "Eu tenho pouca imaginação, porem sou um excelente observador". Não senti vergonha das duas besteiras cometidas porque a minha euforia superava toda outra sensação. A reportagem transcorreu normalmente, se existe normalidade de estar com um gênio como o colombiano Garcia Marquez.
As datas, locais, quantias, palavras, as tenho nebulosas após tantos anos, porém não sobre como surgiu Cem Anos de Solidão. Esse fenômeno da arte de escrever decidiu pagar o preço para dar a oportunidade a seu talento de chegar o mais longe possível.
Garcia Marquez era jornalista. Um dia de 1965 ou 1966 decidiu sair do seu trabalho para escrever uma novela que martelava na sua cabeça, que mexia com a sua alma. Foi numa viagem ao México. Estava casado com Mercedes e tinha dois filhos varões. A mulher concordou com o projeto sem base racional, mas conhecia bem a seu esposo, a sua paixão, o seu talento.
Mercedes aceitou o desafio de administrar os escassos recursos para alimentar a família e pagar o aluguel. Garcia Marques passou dezoito meses num quarto com sua máquina de escrever. E a segurança familiar, e o perigo de passar fome? A decisão estava tomada, escrever o livro que explodia no seu cérebro e acelerava seu coração.
O dono do apartamento apareceu para cobrar três meses de atraso no aluguel. Dona Mercedes explicou que não tinha como pagar esses três meses nem os próximos três. O único argumento foi o real, seu marido quis ficar desempregado para escrever uma novela. O proprietário aceitou esperar. Foi fechado o acordo. Dona Mercedes pagaria quando pudesse.
Apesar do apoio do senhorio, faltava dinheiro para o resto. Um dia, Garcia Marquez saiu do quarto. Foi para levar a uma loja de penhores o que tinha de valor, na realidade de pouco valor material. Com esse dinheiro deu para chegar até o fim do livro, de 700 páginas.
Garcia Marquez tinha claro que deveria enviar a obra pelo correio para a Editora Sudamericana, em Buenos Aires, então uma das maiores do mundo e líder em edições em espanhol. Ao chegar ao correio para despachar soube que com o que tinha no bolso dava para pagar somente a metade das páginas do livro. Enviou a metade e depois seguiu para a sua casa, donde pegou um aquecedor e um liquidificador para transformá-los em dinheiro, na loja de penhores. O dinheiro deu para enviar a segunda remessa do livro.
A única pergunta que dona Mercedes fez a seu marido, depois de tanto sacrificio, foi: "Você esta certo que o livro é bom?".
Depois de alguns dias Garcia Marquez recebeu um chamado da Editora Sudamericana para informar que o livro seria editado e que enviavam passagem para ele ir a Buenos Aires para discutir um bom contrato. Garcia Marquez aceitou e pediu um adiantamento, sem especificar a quantia. A editora enviou uma quantia vinte vezes maior da que tinha imaginado.
O primeiro pagamento foi para saldar a dívida do aluguel, depois para encher a geladeira e os estantes da cozinha. Cem Anos de Solidão foi lançado em 1967. A obra do Gabo vendeu desde esse ano mais de 30 milhões de exemplares e foi traduzido do espanhol para 49 linguas.
Idêntica coragem para dar todo pelo talento recebido, eu constatei no argentino Astor Piazzolla, gênio da música contemporânea. Eu fui testemunha de grandes momentos desse artista, autor de 500 obras, através da sua entranhável amizade e convívio com o meu pai. Nada era mais importante para ele que criar e executar música. Sua vida era música ou música era sua vida.
Também dessa mesma estirpe é uma escritora brasileira que tive a honra de conhecer. Ela tomou difíceis decisões familiares e profissionais, na idade madura quando muitos recuam, para abrir espaço a seu talento. Na atualidade, ela escreve e escreve. Compartilha seus escritos com umas centenas de seguidores. Confio e desejo que um dia ela seja descoberta uma grande editora e vire bestseller.
São impecáveis textos sobre o cotidiano, observações agudas que nos fazem perceber a riqueza do universo. Ela não busca nem dinheiro, nem fama com seu talento. Só dar a oportunidade para esse dom sair a luz. Desejo que seja muito feliz para premiar sua coragem. As escolhas não são fáceis. Ela escolheu ser coerente e agradecida com o talento recebido. É um presente divino que poucos são suficientemente valentes para aproveitar esse dom, em toda a sua grandeza.
** Guillermo Piernes: Jornalista, diplomata, escritor
Imagem: Gabriel Garcia Marquez - Dallas News
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