Poemas
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01/04/2024 00:00
Meu apartamento dos outros
José Fonseca Filho **
Mudar de moradia numa mesma cidade ou, em escala maior, de uma cidade para outra é sempre um trabalhão e traz muitas dificuldades. Nem sempre dá bons resultados. Por vezes a pessoa se muda, com grande sacrifício, mas depois não consegue se acostumar com a nova residência e reconhece que deveria ter ficado onde estava. Lá podia ser pior, ou estar faltando alguma coisa, mas com algum esforço acabaria se acostumando.
Agora que me mudei, dane-se. Terei de aturar, além do apartamento alugado, as dificuldades da mudança e aclimatação em outra cidade e com outros futuros vizinhos e clientes. Eu estava também iniciando meu novo trabalho, que implicava em viagens com certa frequência, para outras cidades. Isso exigia intensa rotina de trabalho e deslocamentos pelos estados da região. Teria de conquistar a simpatia do público a quem pretendia vender meus produtos e torná-los clientes. Acabei, realmente, mudando de cidade.
Assim a minha nova residência, ainda longe de estar devidamente equipada, continuou sendo apenas razoável em termos de acomodações. O apt era desprovido e assim continuou por vários meses. Apesar de eu pretender implantar alguns novos arranjos a cada semana. Pessoalmente, como proprietário eventual, eu não ousava convidar quase ninguém para fazer-me visitas. Pelo menos enquanto ele não estivesse decentemente equipado.
E fui me adaptando à nova cidade, conhecendo pessoas, fazendo amigos e amigas, um novo círculo de amizades. Embora com o apartamento ainda incompleto, já me sentia mais satisfeito. Chegava até a convidar novos amigos e amigas, para tomar um drinque no meu chateau, como chamava carinhosamente o local onde estava começando a morar.
O quarto de dormir, obviamente, já estava praticamente pronto. Cama de casal para nenhum casal botar defeito. E de colchão duro, para não comprometer a coluna cervical. Ela teria de fiar sempre ereta, para não prejudicar um troço chato que eu tinha, chamado de hérnia de disco. Ela dói pra caramba, se não estiver sendo bem tratada.
Os amigos, e sempre as amigas também, me ajudaram em várias compras de objetos e móveis. Sem eles e elas, eu praticamente ficaria com o apartamento vazio. Novo na cidade, novo no emprego e numa cidade ainda provinciana, eu não conseguia comprar quase nada por falta de dados, informações sobre mim próprio sempre solicitadas por todas as lojas.
Para alugar o apartamento foi uma guerra. Há quanto tempo o Sr. mora nesta cidade? Um mês, respondia. E na empresa, trabalha há quanto tempo? Um mês, respondia eu. O Sr. pode me dar os nomes de três pessoas para que eu peça informações cadastrais a seu respeito? Não! Porquê? Porque não conheço ninguém aqui. Moro nesta cidade há cerca de um mês.
Fui comprar uma geladeira e um fogão. Ou morria de fome e sede. Mesmo drama.Quis parcelar em cinco vezes. Pode, se o Sr. indicar dois fiadores, dizia o vendedor. Não tenho nenhum conhecido nesta cidade para ser meu fiador, informei. Me venderam então uma geladeira vermelha, horrível, à vista, mais barata que as outras. Deu para comprar. O fogão ficaria para depois. A geladeira é mais importante para guardar a água, o leite, a cerveja, o vinho e as frutas. E o gelo para o uísque.
Comprei também uma pequena mesa e 4 cadeiras. E algumas toalhas para o banheiro, claro. Já achava que meu palacete estava ficando bonito, e cada vez eu tinha mais amigos e amigas. Mas continuava viajando. E o "belo" apartamento sempre com dias vazios, desocupado. Surgiu então um primeiro pedido, meio envergonhado, de um amigo. Sabendo das minhas viagens, e apaixonado pela namorada, aventou a possibilidade de eu poder emprestar-lhe meu chateau num dos dias em que eu estaria ausente. Pediu de modo muito cerimonioso.
Afinal, esses empréstimos eram mesmo temporários. Não tinha pernoite, era chegar de tardinha, cumprir com a obrigação e sair tranquilamente, mas sem bagunçar o coreto. Daí em pouco tempo surgiram outros pretensos inquilinos temporários, sempre de alto nível de educação, o mesmo em relação às garotas, ou mulheres. Meu pobre chateau começou a ficar famoso, mas inteiramente discreto. Afinal, apoucos amigos eu concedia tal privilégio exigindo, do casal, total discrição e conservação do imóvel e seus pertences. Em bom português, nada de
esculhambação ou desrespeito ao proprietário. E cuidado com o imóvel.
Apesar da humildade, era realmente um chateau de gabarito, e não uma zona. Em um ambiente de grande respeito e moralidade. As mulheres, não conheci nenhuma, mas os meus amigos eram corretos, educados e preocupados com a conservação do imóvel. Suponho que as mulheres, as garotas, também. E a cidade, realmente, carecia de um investimento chamado motéis.
Havia uns que, gratos ou emocionados com a grandeza do proprietário, deixavam uma lembranças para mim. Várias vezes fui surpreendido, e me deixavam garrafas de uísque ou vinho. Ambas, geralmente, eram sobras. Quando as garrafas eram novas, fechadas, eram presentes mesmo, para o proprietário do motel. Com dois meses de funcionamento, eu contabilizava 8 garrafas de uísque consumidos pela metade.
Vamos acreditar que, sem jamais imaginar, eu posso ter vindo a proporcionar o surgimento de casais alegres e felizes. Casais temporários, com certeza. Eu cheguei a imaginar, entre os jovens casais de namorados, papos de fim de semana curiosos. As mulheres sugeriam: depois do cinema, vamos para o apartamento daquele seu amigo? Alguns desses casaizinhos de oportunidade se uniram para sempre, e ainda hoje recordam meu modesto mas acolhedor apartamento, no qual podem ter passado algumas das boas horas de suas vidas.
De um detalhe tenho certeza: nenhum deles esqueceu do modesto mas simpático apartamento, com uma geladeira vermelha, bem feiosa, mas boa para conservar cervejas e o gelo do uísque. E quando, por acaso havia um pedaço de melancia, ninguém apanhava. Lá permanecia intacto para o proprietário.
Ainda correm boas estórias sobre o meu apartamento encantado. Eu também tenho estórias para contar. Uma amiga com quem convivi e trabalhei anos depois, um belo dia contou-me me uma estória. Perguntou-me se eu nunca havia ouvido falar dela, e respondi que não. Só a partir de alguns anos, quando começamos a trabalhar juntos, na mesma empresa.
- Pois eu o conhecia, só de nome, há dois anos, ou mais, embora só o tenha visto e conhecido pessoalmente a partir de agora, no trabalho. Passei belas tardes com meu namorado em seu apartamento, e lá tivemos um belo relacionamento. Mencionou o nome do namorado e eu obviamente conhecia. Só emprestava o apartamento a amigos meus.
- Espero tenha guardado boas lembranças ? disse.
- Claro, estamos juntos até hoje. Nunca esqueço das horas agradáveis, dos uísques que deixávamos pela metade e de uma geladeira vermelhona na cozinha. Gelava mas era muito feia.
Que eu saiba, foi a única que criticou minha geladeira.
** José Fonseca Filho é jornalista
* Pareja abrazándose - Óleo de Leonid Afremov
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