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02/05/2024 00:00
Almas penadas de Itaici
Maria Helena Tachinardi **
Alta, magra, pele clara, cabelos escuros lisos, tia Laura gostava de traquinagens, como procurar ovos de patas no imenso quintal que compartilhávamos com o vizinho. Da travessura participávamos eu, que tinha uns cinco anos, e minha irmã Vera Lúcia, um ano e meio mais velha. Com a Lala, como a chamávamos, tudo era permitido, até pegar aqueles ovos enormes das patas da outra família, que ciscavam aqui e ali e botavam livremente, no mato, sem a mínima preocupação com quem iria colher o alimento que expeliam. Lala inventou outra brincadeira que nos fazia rir: contava histórias futuristas para a velhinha Nhana, que morria de medo de discos voadores e homens do outro mundo. Nhana era a mãe de um ferroviário que frequentava o bar do meu pai, em frente à estação. Além do trabalho na Estrada de Ferro Sorocabana, Orlando de Campos era cantor, interpretava com seu vozeirão e dramaticidade boleros e tangos.
Nos anos 1950 e 1960, a ferrovia era vibrante em Itaici. Dizia-se que o bairro era mais importante do que a cidade de Indaiatuba, pois sediava um entroncamento por onde passavam 12 trens diários com destino a Itu, Sorocaba, Campinas, Jundiaí, São Paulo, Piracicaba e Santos. Além de passageiros, os trens transportavam mortos em vagões especiais, com as janelas fechadas e cobertas por um pano preto, para que a parada na estação não causasse um ar fúnebre nem perturbasse o burburinho das plataformas. Tudo transitava pelos trilhos: latões de leite, sacos de cereais, mudanças... E havia também o vagão pagador, de cujas janelas saía o ordenado dos ferroviários.
Em manhãs frias, seguíamos um ritual. Laura, a irmã Noêmia, cujo apelido era Nema, e as sobrinhas saíamos da casa contígua ao Bar e Sorveteria Itaici, mais conhecido como o bar do Agenor, em direção ao colégio velho dos jesuítas. A missa em latim era um compromisso diário. Embora não entendêssemos a linguagem das orações, sentíamos o prazer de uma caminhada cheia de sensações, e isso era o mais importante naquela etapa infantil da vida. A principal emoção tinha a ver com o medo de percorrer o caminho ainda escuro dentro da mata orvalhada. Rezava a lenda que a alma de um padre, vestida de batina preta, atravessava a certa altura a trilha que conhecíamos palmo a palmo.
O pedaço de mata atlântica que protegia o rio Jundiaí era exuberante. Vera Lúcia e eu ouvíamos da avó Emma histórias de escravos e índios, que tinham habitado aquela fartura verde com onças e outros animais, até mulas sem cabeças. Aquelas terras tinham sido de João Tibiriçá, presidente da Província de São Paulo. Nos anos 1950, a fazenda Taipas, que já era de propriedade dos jesuítas, não podia cancelar toda a riqueza folclórica produzida ao longo dos anos, que povoou o imaginário dos moradores. Não dava para proibir contos sobre o ranger de correntes e gemidos de escravos naquelas matas. Eram tantas as histórias que fertilizavam a nossa imaginação! Uma delas era a da mulher da casinha azul na curva onde o trem apitava, que aparecia à porta de vestido branco, uma alma penada de Itaici.
Entre vagões, máquinas de chave, trilhos, dormentes e apitos, as tias e as sobrinhas caminhavam soltando fumaça pela boca ao respirar o ar de maio. O inverno não tinha chegado ainda, mas, no mês de Maria, de coroação de Nossa Senhora e de rezas na igreja de Santa Terezinha e no colégio velho, o frio era mais intenso do que nos tempos atuais de aquecimento global.
As sobrinhas cresceram em ambiente de religiosidade, cercadas por jesuítas amigos da família. Amadeu, nosso avô, fora administrador da fazenda dos padres, como era conhecida a Taipas. Meu pai, Agenor, serviu como coroinha em missas, e na adolescência levava passear de charrete os padres do Colégio São Luís, que nas férias viajavam de São Paulo para descansar em Itaici. Emma, exímia cozinheira, era convidada pelos jesuítas para preparar refeições especiais na Semana Santa e no Natal. Em casa nos mimava com pratos italianos, especialmente gnocchi, e servia assados e massas frescas acompanhadas de galinha caipira em molho.
A ferrovia, o rio Jundiaí, o colégio dos jesuítas: a vida em Itaici se desenrolava ao redor dessas três instituições.
A estação, com duas plataformas, era o ponto central do bairro. Como se fosse a nossa praça, reunia a bilheteria, a casa do chefe e o bar do Tavico. Nela fazíamos passeios diários com Amadeu. Tudo reluzia naquele espaço: o sino dourado, as placas de sinalização, os uniformes impecáveis dos maquinistas, foguistas, telegrafistas e do chefe de trem.
As irmãs eram felizes, pois quem não conhecia os homens da vida delas, o pai e o avô?
Agenor era um comerciante querido: recebia os passageiros sempre sorrindo, desdobrava-se em atenções para que todos comessem com prazer bolos e sanduíches e tomassem um belo café com leite, a tempo de não perderem o trem que parava por alguns minutos na estação. A família inteira servia no balcão de mármore branco. As vitrines disputavam com a sorveteria olhares famintos.
Amadeu, com seu chapéu de feltro e alpargatas, ar bonachão e bom humor, era presença notável no bairro, menos por ter sido um de seus benfeitores, mais pelo trato agradável. Doou terreno para a construção do salão paroquial ao lado da igreja de Santa Terezinha, a padroeira, e na família é sempre lembrado pela frase com que exprimia a mistura de fé com uma ponta de dúvida sobre a religião. Conta-se que, ao subir o morro para ir à missa dominical em companhia do cunhado, dizia, meio brincalhão: ?se não existir o céu, ma que chavada, Ezequiel?. Assim mesmo, com um certo sotaque italiano.
A relação de Amadeu com a estação ferroviária também era gastronômica: os passageiros iam ao açougue dele para comprar a deliciosa linguiça produzida com pequena colaboração da neta. Eu descascava alho e levava espinhos de laranjeira do quintal para furar a tripa depois de cheia.
A Sorocabana foi muito importante na vida da família. Do ponto de vista comercial, pela frequência de passageiros no bar e no açougue. Do lado trabalhista, porque meu pai foi telegrafista, seu primeiro emprego, que exerceu após aprender o código Morse no Centro de Formação em Transportes, em Itaici.
Filhas da professora Adalgisa, a dona Zisa, Vera e eu achávamos nosso pai um galã de filme, principalmente quando íamos com ele no ?verdinho?, o Chevrolet da família.
O Jundiaí, que serpenteava ao lado da estação, era outra preciosidade do bairro. As águas cristalinas do rio serviam as casas, saciavam a sede dos cavalos, supriam areia fresca e fina para os campos de malha e bocha construídos por meu avô, e alegravam os domingos do meu pai, com quem eu pescava em um trecho chamado ?rio cortado?. Após o almoço, Agenor cuidava das varas, enquanto eu o ajudava a preparar as iscas: minhocas e miolo de pão. Voltávamos para casa com lambaris, bagres, cascudos, traíras e corimbatás.
O que mais encantava, além do silêncio e do conjunto natural formado pela mata e o rio, era o cheiro de folhagem úmida que inundava os nossos sentidos pela manhã, na trilha que levava ao colégio velho.
No caminho para a missa, havia uma ponte. Ao lado, a caixa d?água que abastecia a locomotiva. Em um pedaço do rio em direção a Indaiatuba, as lavadeiras assentavam seus bancos.
Eram muitas as histórias sobre o Jundiaí: pescadores picados por cobras nas barrancas, lavadeiras levadas pelas águas, meninos que se afogavam, bêbados que morriam na travessia de uma margem a outra. A cada acontecimento trágico, crescia o rol de almas penadas.
Os moradores de Itaici respiravam religiosidade: as crianças aprendiam o catecismo, pertenciam à Cruzada Eucarística, cantavam no coro da igreja, coroavam Nossa Senhora, vestiam-se de anjos nas procissões, serviam como coroinhas nas missas.
Noêmia era catequista. A tia do lado paterno mais católica, pele clara, cabelo crespo ruivo, sardas, era para as sobrinhas referência em tudo o que se relacionava aos jesuítas: sabia o nome dos padres e irmãos leigos que frequentavam o colégio velho.
Em frente àquela construção, as meninas com seus vestidos e boinas brancos e faixas amarelas no peito cantavam, tomavam lanche, brincavam na pequena roda gigante, na gangorra e no escorregador ao pé da torre, equipamentos de lazer rodeados por coqueiros, pés de uvaia e guapiruvu.
Num daqueles domingos de catecismo, minha irmã Vera levou um susto que a traumatizou pelo resto da vida: um cachorro correu atrás dela e arrancou-lhe o sapato, enquanto subia a escada para o campanário.
Outras histórias, porém, foram mais tristes. O menino Gerson, ou Gersão, como o chamavam em Itaici, teve um fim trágico. Certa manhã, seguindo ao lado da linha férrea, foi atingido por um trem e morreu. Ali mesmo se espetou uma cruz branca, pois era um anjinho que subia ao céu. Mais uma alma penada de Itaici.
As sobrinhas da Lala e da Nema começaram a colecionar histórias que pareciam sem fim: de bêbados e ?ligeiras?, como em Itaici eram chamados os andarilhos Butuca, Pé Torto e Leoneza, e de almas penadas, como a do garoto Gersão, a da mulher da casinha azul e a do padre de batina preta.
** Maria Helena Tachinardi - Certamente a mais importante jornalista brasileira na cobertura de politica externa que durante anos trabalhou na Gazeta Mercantil, escritora.
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