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Cuentos
05/12/2024 00:00

Louca, louca, louca
Guillermo Piernes **
Alfredo não conhecia a filha de Wanda, que nasceu um ano e meio depois de que ela o deixasse e se unisse a um jovem produtor de eventos para viver seu sonho de casinha, de maridinho, de filhinhos, no interior de Goiás.
Wanda foi a maior paixão e amor da sua vida. Alfredo apostou tudo nessa paixão e nesse amor. Tudo perdeu, menos a certeza que sim, que valeu a pena.
Quando ela, com 20 anos, começou a pressionar a relação para seguir seu instinto de procriação, Alfredo a deixou partir. Ele já tinha passado por essa etapa e queria viver somente essa grande paixão, que impregnava cada célula. Desse final, faz duas décadas.
Ele retomou sua vida profissional, de relacionamentos sociais e amorosos, mas com ela sempre entrando nos seus sonhos, suas fantasias. Uma cicatriz na alma? Não podia definir, mas Alfredo conseguiu recuperar seu sorriso, seu libido, sua vontade de viver plenamente, ainda consciente de ter renunciado ao seu nível máximo de delirante felicidade.
Alfredo tinha descartado montar um novo apartamento, se apegar a objetos, a pessoas. "A vida segue", todo dia repetia ao fazer a barba, no seu flat num bom hotel de Recife, com piscina e bem montado ginásio, frente a praia de Boa Viagem. Ele permutava com a empresa proprietária do hotel seus serviços de advogado pelo confortável local para morar.
O hotel ficava próximo onde tinha morado três anos inesquecíveis, com Wanda. Isso era passado, mas "...la vida nos dá sorpresas // sorpresas nos dá la vida ...", como reza o merengue Pedro Navaja, do portoriquenho Rubén Blades.
O telefono celular ligou num sábado, perto das nove da manhã, quando ele acabava de voltar da corrida de quatro quilômetros e de um rápido mergulho no mar.
-- Bom dia, sou Raquel, filha de Wanda. Cheguei a Recife para conhecer a cidade e gostaria de lhe encontrar. Minha mãe sempre falou com carinho do senhor...Estou com duas companheiras de estudo num hotel também em Boa Viagem.
Alfredo respirou fundo três vezes até responder: "Bom dia Raquel. Sim, com todo prazer. Podemos marcar no restaurante do hotel onde resido, umas 20 horas, para jantar. Eu te dou carona para voltar ao teu hotel. Se quiser até pode ser hoje...
`-- Ótimo, até porque minhas amigas querem ir numa balada e eu não curto muito esse tipo de música repetitiva.
Exatamente na hora acordada, Raquel se aproximou da mesa onde Alfredo aguardava a jovem. Sim, aguardava a filha de Wanda mas não uma mulher que era a copia física exata da mãe. Estatura mediana, magra mais de cadeiras fortes, cabelo longo claro e os mesmos olhos castanhos azulados. A mesma beleza magnética. Era como estar na presença da mulher que desatou a sua maior paixão. Pensou estar delirando mas se controlou e estendeu a mão.
"A minha mãe me disse que o senhor não gosta de ser visto em lugares públicos quando se trata de assuntos pessoais. Por isso se o senhor preferir podemos subir ao seu apartamento", Raquel iniciou a conversa. O experiente advogado cinquentão não estava preparado para essa introdução e apenas conseguiu concordar inclinando a cabeça.
Na varanda do quarto perguntou a idade de Raquel ("fiz 21 anos em agosto") antes de oferecer um espumante brut que sempre tinha no frigobar, para onde caminhou lentamente intentando se recuperar da visão das mesmas pernas bem torneadas, os lábios carnudos que tanto tinha acariciado, tanto tinha beijado.
Brindaram e Raquel falou: "sei mais do senhor, desculpe você, do que a maioria das pessoas que conheceu na sua vida. Minha mãe contou a história desse amor mil vezes e também...os seus sonhos e fantasias", agregou com um sorriso pícaro.
A garrafa, entre mais brindes e risadas, esvaziou junto aos intocados pacotes de castanhas que Alfredo tinha retirado do frigobar. Ela tinha perguntado muitas coisas sobre a sua mãe como namorada, algumas sobre ele, de todo tipo. O que podia ser respondido com total sinceridade foi respondido. As outras perguntas apenas recebiam um sinal negativo.
"Você é incansável. Não vai parar de preguntar?", ele interrogou olhando essa jovem mulher tão inteligente, sensível e bela, sentada ao seu lado.
"Não, porque preciso entender a razão pela qual vocês não seguiram juntos. Era uma relação maravilhosa. Tudo dava certo na rua, na mesa, na cama...minha mãe foi covarde...", Raquel disse.
"Apenas imatura... eu fui egoista empurrado pela paixão pela tua mãe", ele respondeu rapidamente.
"Eu nunca teria deixado o homem que passou a integrar também a essência do meu ser...Um homem apaixonado, educado, que libera, que busca a alegria e o prazer, que convida a voar...", ela afirmou.
"Não é bem assim", ele disse acanhado.
"Teria gostado muito de você ter sido o meu pai... Diria que você é minha fantasia masculina... Por outro lado, que bom você não é meu pai...Que bom...que bom...", susurrou Raquel, que não espero resposta. O beijou, segurando a sua cabeça e mantendo os lábios colados enquanto a lingua entrava na boca entreaberta de um Alfredo paralisado, atónito.
A jovem abriu a blusa e ofereceu seus peitos brancos de bicos rosados. Alfredo nada disse. Apenas voltou a beija-la com a aquela mesma paixão, desenfreada, sem culpa, total, louca, louca, louca.
** Guillermo Piernes, jornalista, escritor, ex-diplomata
* Pintura Ojos de locura de Enea Kelo , Dreamstime.com
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