Contos
Cuentos
08/07/2025 00:00

Sem discussão
Guillermo Piernes **
Raul tinha muito claro que não era possível consertar a estupidez alheia, nem bandidos. Assim conservava a sua energia e desfrutava plenamente das coisas boas da vida.
Aos 40 anos passou a se concentrar na sua oficina de restauração de peças históricas. Não tinha que convencer seus clientes do valor do seu trabalho. Quem o procurava sabia do seu excelente trabalho e pouco discutia o preço. Dava para viver sem luxo porém com conforto no apartamento de um quarto que alugava, sem ter que discutir com idiotas. "Quase uma bendição", pensava.
Quando topou com Débora achou que seria uma etapa ainda melhor. Ela tinha tino comercial e passou a comprar peças antigas a baixo preço nas chácaras do interior do Rio Grande do Sul. Depois do trabalho de Raul as revendia para antiquários e colecionadores. A oficina, perto do centro histórico de Porto Alegre, passou a ser uma fonte de ingressos excelente. Contratou três ajudantes, todos estudantes de arte, para dar conta dos pedidos.
Numa inconsciente forma de agradecimento iniciou um relacionamento com ela. Débora estava longe de ser sua fantasia sexual de mulher. Sobravam vários quilos, que eram atenuados por sua boa vontade no leito, capacidade para as relações públicas e esperteza para os negócios.
Alexandre, o único amigo de Raul, até se permitiu goza-lo: "Concordo com você que mulher magra é apenas para modistos homosexuais. Concordo que mulher deve ser cheinha, ter onde segurar, mas você desta vez exagerou...".
Raul riu e entonou para seu amigo "Mi novia gorda", música do interior argentino que tinha gravada na memoria pelo seu humor: "... señores yo soy muy flaco / pero do corazón tierno / y tengo uma novia gorda / para pasar el invierno / calienta cuando hace frio / en verano me dá sombra / que me importa que sea gorda / si para correr no la quiero / ...
Os negócios iam de vento em popa. Débora tinha assumido a administração, as compras e vendas, a movimentação bancária, com amplio poder legal, deixando para ele mais tempo para restaurar, ouvindo música clássica. Era a parceria colorida perfeita, pensou. Errou.
Uma manhã, Débora apareceu com seu primo e a mulher, aos quais já tinha conhecido numa festa de aniversário. Eles eram proprietários de uma agencia de viagens em Bela Vista, aberta uma década atrás e de fiel clientela.
Um mês depois da visita, Débora disse que os primos queriam fazer uma excelente oferta para comprar a oficina com a carteira de clientes. "Escutar não faz mal", respondeu. A reunião de negócios foi marcada.
O primo ofereceu inicialmente uma quantia que dava para comprar um excelente apartamento em Moinhos de Vento. Débora pediu, 20% mais. Eles aceitaram aumentar 10%. A venda foi fechada. Dois dias mais tarde o primo trouxe o dinheiro da entrada, que dava para pagar um ano do aluguel do apartamento de Raul.
O resto seria depositado na sua conta, um mês após a entrega da oficina. Foi pago duas semanas antes do prazo. Raul nunca viu o dinheiro.
Debora recebeu tudo e sumiu depois de assinar em cartório a venda. Ele teve de entregar a oficina porque ela assinou a venda em cartório, com a ampla procuração outorgada.
Raul sentiu seu mundo desmoronar. Ficou sem oficina, sem clientes, sem ingressos, sem vontade alguma. Foram quase dois meses de andar feito um zumbi pelo centro de Porto Alegre, junto ao lago Guaíba em busca de alguma motivação para se reerguer. A encontrou: Vingança.
Ele comprou, com dinheiro trocado, dez pacotes de veneno para rato. Longe do seu apartamento foram duas seringas e quatro agulhas. Num comercio de Menino de Deus, duas caixas de bombons recheados com licor, de marcas diferentes. Num outro comercio de Bela Vista, outras duas caixas de bombons, também recheados com licor e de marcas diferentes. Numa papelaria perto do Parthenon, uma delicada caixa de madeira, papel de presente, um papel aveludado vermelho, um metro de fita dourada e um cartão de aniversário. Numa farmácia na Cidade Baixa, uma caixa de luvas de plástico finas.
Raul não saiu do seu apartamento por três dias. As vozes favoritas de tenores e sopranos se revezavam, em baixo volume, no pequeno apartamento provenientes do velho toca-discos por el restaurado. A única mesa, coberta com um plástico, era o palco. Com suas mãos habilidosas, abriu cuidadosamente o papel colorido de cada bombom. Depois diluiu o veneno de rato numa pequena quantidade de licor de sabor suave e aplicou com a seringa de fina agulha, em cada bombom. O bombom onde apareciam vestígios da aplicação era descartado, assim como o aquele que ao ser envolvido no papel apresentava imperfeições.
O restaurador completou a caixa com os bombons selecionados, embrulhou primorosamente com o papel de presente e a fita dourada. Aguardou 40 dias até a data de aniversário de Débora. Pela manhã do dia foi a um local de entregas por motocicleta nas redondezas do Mercado, pagou em dinheiro e entregou a caixa de papelão etiquetada com o endereço de Débora. Dentro da caixa estava a caixa de bombons e o cartão de aniversário.
Raul voltou a ter vida social. Reencontrou conhecidos nos bares visitados e reuniu-se quase diariamente novamente com Alexandre, na casa do amigo. Voltou a restaurar, a pedido, trabalhando no máximo três horas por dia.
Na terceira vez que encontrou Alexandre para compartilhar um chimarrão, o amigo lhe contou as novidades. "Tenho noticias da Débora. Está magérrima. Quando te deu o golpe começou uma dieta para emagrecer. Nestes quatro meses parece que perdeu quase 20 quilos. Sem carbohidratos, nem álcool, sem grama de açúcar. E parece que recentemente também perdeu peso por desgosto..."
- Que aconteceu? Raul perguntou. Alexandre, após encher a cuia, em voz baixa respondeu: "O primo morreu por intoxicação ao voltar da festa do aniversário da Débora. Algo deveria estar estragado na mesa da festa". Raul balançou a cabeça, pegou a cuia do chimarrão e disse: "...pois é..."
** Guillermo Piernes, jornalista, diplomata, escritor
* Crédito desenho seringa, Freepix
[ VOLTAR ]