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07/09/2020 00:00

Era do descarte e do vazío
Por Valerio Fabris
No cerne da cultura ibérica que se transplantou, no século XVI, para a atual região da América Latina está a prevalência da aventura sobre o trabalho, como escreveu Sergio Buarque de Holanda.
É uma cultura colonial que carregava consigo a compulsão ao descarte. Descobrir uma nova terra, explorar a terra, exaurir a terra e mudar de terra. Assim a gente fez. Assim continuamos fazendo.
Agora, nesta era da geração dos millennials, chegamos ao ápice do descarte, seja no trabalho ou no ambiente doméstico. A nova ordem impõe o máximo de cleaness, de limpeza.
Sabemos muito bem como ficaram os escritórios. Mas, falemos do ambiente doméstico modelado no novo estilo, new fashion.
A tecnologia digital facilitou o esvaziamento (inclusive mental) dos que querem se sentir up to date (em dia) com a pós-modernidade.
Esses indivíduos cool (descolados) ficaram socialmente autorizados a descartar, aos montões, os livros, os CDs, as estantes, as panelas de alumínio (que serão substituídas pelas novas, de aço, que podem ficar expostas, pois são uma demonstração do luxo da casa), as plantas, os emoldurados retratos de família etc etc. A memória afetiva e a história contidas nos guardados não importam, porque a fila anda.
O click deixou à mostra as tralheiras, inclusive a do conhecimento geral. Tudo o que se quer saber está na Wikipedia.
Na pós-modernidade, a reflexão consigo mesmo tornou-se igualmente dispensável, porque a realidade contemporânea é objetiva, diret´a ao ponto, straight to the point.
Quando se necessitar de uma decisão derivada de transcendências, subjetividades e introspecções, recorre-se ao coach, ao instrutor de atitudes, que nos passa o mapa da mina.
Um amigo arquiteto, especializado em projetos de lojas, me contou que, ao se alugar uma casa para fins comerciais, os mais novos inquilinos imediatamente ordenam a derrubada de uma parede aqui, outra ali, mais uma acolá, na base do vapt-vupt.
Disse-me ele -- "Em qualquer país que atingiu um elevado nível de desenvolvimento, lastreado na cultura do trabalho e no conhecimento, faz-se um detalhado projeto prévio, pensa-se um milhão de vezes antes de se derrubar uma parede, que é o último recurso. Aqui, não. Já de imediato, vai-se quebrando, quebrando, e vê-se o que dá depois. Quebra-se desnecessariamente. E o custo fica muito mais alto".
Os muitos milhões desta era do vazio e do descarte agora celebram a pandemia. Atingiu-se o the top, como gostam de pronunciar. Que maravilha. Show! O vírus está descartando a velharia. Já houve até uma autoridade federal dizendo que isso ajudará no equilíbrio das contas previdenciárias.
* Valerio Fabris, jornalista
Imagem: Hipster men - Free Pix
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